Sobre comunidades e cocriações

(Entrevista concedida para a Ciranda de Filmes, que colaboro desde a sua criação)

Do entendimento de mestre, vamos para a força dos mestres, assim, no plural. Crianças, jovens e adultos, alunos e educadores, se misturam na construção de comunidades de aprendizagem. Todos se transformam em mestres no processo de aprendizagem. A criança é mestre de si mesma na convivência, nos espaços de diálogo e construção coletiva. O mestre é o mediador e tutor desse caminho. Os mestres, eles e elas, facilitam e crescem juntos com as crianças e jovens, em uma interação cocriativa.

No relatório da UNESCO “Educação, um tesouro a descobrir” são apresentados Os Pilares da Educação para o séc XXI. Com coordenação de Jacques Delors, o documento, cada dia mais atual e necessário, acolhe como um dos pilares o “Aprender a conviver” que ilumina e atenta ao desenvolvimento da compreensão do outro e de nossa interdependência.

Em tempos de incerteza, onde a noção de coletividade está carente de atenção e entendimento, a Ciranda de Filmes convidou o Professor José Pacheco, um dos grandes dinamizadores da gestão democrática da educação e um dos fundadores da Escola da Ponte, a participar da Roda de Conversa: Mediador do mundo, que aconteceu no dia 09/06. Veja a seguir uma pequena entrevista com ele, realizada por Vanessa Fort.

O senhor sempre fala que descobriu-se educador quando deu conta que o processo educativo era muito solitário, tanto para o professor, quanto para as crianças e jovens. Há uma frase muito bonita que o senhor diz que “Projetos humanos são atos coletivos”. É verdade que o coletivo é algo que se aprende e se constrói em cada tempo e espaço diferente, com todos os conflitos e tensões que lhes são próprios?

Professor José Pacheco: Tenho vivido obcecado pela criação de comunidades de aprendizagem, uma nova construção social de aprendizagem capaz de substituir os obscenos rituais da velha escola. A expressão “comunidade de aprendizagem” tem sido usada para descrever o fenómeno dos grupos de indivíduos (coletividades), que aprendem juntos. Mas é muito mais do que uma mera coletividade, porque qualquer projeto educacional é um ato coletivo, obra de uma equipe, que partilha valores e que, pela assunção de princípios de ação, o concretiza. Falo de uma equipe, de uma partilha de valores, que pressupõe uma visão de mundo comum, a produção de saberes e recursos úteis a uma coletividade de interação cocriativa, caraterizada pela transculturalidade, envolvida em aprendizagens mútuas, numa convivência intergeracional colaborativa. Falo da criação de laços, do tecer redes.

Uma comunidade de aprendizagem é algo que se aprende e se constrói no quotidiano, em múltiplos espaços, dirimindo conflitos e tensões, um ato de mútuo consentimento.

O Cineasta Franco-suíço Jean-Luc Godard tem uma frase célebre: “O cinema é um instrumento para interpretar e analisar a realidade com liberdade “. Ele é um dos cineastas que questionou a norma da narrativa. Se criarmos um paralelo com a criança, como podemos apoiá-la a garantir, para que possam criar suas próprias imagens e narrativas? Qual é o papel dos mestres e educadores nessa construção?

Professor José Pacheco: Nos projetos que acompanho (e onde aprendo), os professores deixam de professar, para assumir uma dupla tarefa: e de tutor e a de mediador de aprendizagem. Propicia condições favoráveis à construção do conhecimento. Não prepara projetos para os alunos; constrói projetos com os aprendizes. O seu papel é diverso: coelabora roteiros de pesquisa, avalia, apoia os jovens na elaboração dos seus planejamentos, estimula o trabalho em equipe, fomenta processos de conhecimento mútuo, valorizar a diversidade cultural, contribui para a aprendizagem em ambiente colaborativo. Nesse contexto, os jovens assumem autonomia, aprendem a interpretar e analisar a realidade com liberdade. Porque não se prepara para a cidadania. Educa-se no exercício da cidadania.

Na infância, onde muitas coisas ainda não têm nome, o sensível é o idioma universal de todas as infâncias. Dos afetos e das artes, qual a importância da beleza na vida que dialoga com essa dimensão de sensibilidade?

Professor José Pacheco: Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência, diálogo e participação, enquanto condições de aprendizagem. Porque os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares que ainda temos, carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos, exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.

Diz-nos Maturana que a educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem. Urge, pois, humanizar a educação, concretizar uma educação integral, promover desenvolvimento humano sustentável. E, se o ser humano é mais do que cognição, necessário se torna considerar o papel das artes no domínio do desenvolvimento emocional, afetivo, ético e estético… da sensibilidade.

Ao falarmos sobre o tempo que estamos vivendo hoje, no Brasil e no mundo, como o senhor acredita que podemos apoiar as crianças a pensarem e elaborarem os acontecimentos? Como podemos inserir às nossas práticas e processos com as crianças a discussão sobre ética e liberdade?

Professor José Pacheco: Retomo a afirmação da necessidade da prática de uma educação integral, que seja geradora de um autoconhecimento propiciador do reconhecimento da existência do outro, de atitudes éticas alicerces do caráter. O desenvolvimento de critérios éticos e estéticos é transversal dentro do currículo, podendo ser aprendido enquanto se aprende qualquer disciplina. E participar ativamente da vida social, cultural e política, de forma solidária, crítica e propositiva, reconhecendo direitos e deveres, identificando e combatendo injustiças, e se dispondo a enfrentar ou mediar eticamente conflitos de interesse não pode ser matéria de “anos iniciais ou anos finais”, ou “conteúdo dado no 7º ano”.

O poeta Miguel Torga assim define fronteira: de um lado terra, do outro lado terra; de um lado gente, do outro lado gente… Mas eu vi na TV que, em ambos os lados de um muro perpendicular ao edifício sede do Poder, em ambos os lados dessa absurda fronteira, havia duas “terras de ninguém”, espaços vazios, a precisar de preenchimento. Talvez esse espaço vazio possa vir a ser espaço a ocupar numa reconstrução partilhada entre o vermelho e o amarelo, se os jovens de hoje não forem apenas preparados para a cidadania, mas educados na cidadania, no exercício de uma liberdade corresponsável.

Existe outro Brasil fora do Jornal Nacional. E, para além de um obsceno confronto, existe um Brasil da fraternidade, onde é possível criar espaços de celebrar o encontro. Por isso, acredito ser possível colocar compreensão no lugar da intolerância e trocar o ódio pelo diálogo. Preciso é não haver dois lados. Outro Brasil é possível. Mas, para que esse Brasil vire realidade, cabe à escola um papel essencial: o de educar integralmente na abertura à diversidade.

Para conferir:
Publicações do Professor José Pacheco disponíveis estão online:
Aprender em comunidade (Ed. SM)
Dicionário de Valores, onde ele apresenta conceitos importantes do ensino-aprendizagem

Fonte: Ciranda de Filmes

Vanessa Fort

http://www.comkids.com.br

Roteirista e produtora

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